terça-feira, janeiro 27, 2004

Memória

Quando M. sorriu pela última vez, o pai não estava na sala. Regressou a tempo de ouvir o nome do filho ser gritado por milhares de gargantas. Nada a que não estivesse habituado. M.era um artista e, como tal, tocava fundo a sensibilidade dos que o aplaudiam. Quando entrou naquela campo encharcado, imediatamente deu nas vistas. O cabelo louro avistava-se do lugar mais afastado da bancada e pela elegância dos seus movimentos pressentia-se que algo estava para acontecer. E aconteceu. M. participou e quase concluiu o movimento que faria a multidão levantar-se e aplaudir. Tinha valido a pena. Sair de casa numa noite invernosa, percorrer centenas de quilómetros e esperar oitenta e nove minutos por aquele momento, tinha valido a pena. Antes do sorriso, M. olhou para as bancadas em seu redor. A emoção das pessoas e a sua felicidade tinham a ver consigo. Ele tinha ajudado a fazê-los felizes. Ensaiou outros movimentos, combinou com os companheiros, sujou os calções, molhou a camisola com o seu suor mas a multidão estava rendida. M. era um dos seus e cumpriu o que esperavam dele. Quando M. sorriu pela última vez até a bola, rendida pelo seu toque de artista, se afastou para longe...

segunda-feira, janeiro 19, 2004

Memória

Começam hoje a ser recolhidos os depoimentos das vítimas de pedofilia nos Açores para memória futura. Ao contrário do que sucedeu no continente o juíz de Ponta Delgada considerou urgente tal recolha. Por muitas voltas que o processo dê e por muitas ameaças que as vítimas sofram, algo vai ficar registado e, espera-se, em segurança. No continente, de comédia em comédia e de pressão em pressão, as verdadeiras vítimas dos abusos, as crianças, são quase abandonadas e ignoradas...

Timing

As televisões foram pródigas em imagens, um mês depois de ter sido formalmente acusado, começou o julgamento de Michael Jackson. Quer isto dizer que nos Estados Unidos da América um mês é suficiente para o inquérito, marcação e começo do julgamento.Estes hábitos não podem passar de uns países para outros?

segunda-feira, janeiro 12, 2004

Amor, Amor

"Quando o amor morrer
dentro de ti,
Caminha para o alto
onde haja espaço,
E com o silêncio
outrora pressentido
Molda em duas colunas
os teus braços.
Relembra a confusão
dos pensamentos,
E neles ateia o fogo adormecido
Que uma vez, sonhos de amor,
teu peito ferido
Espalhou generoso
aos quatro ventos.
Aos que passarem
dá-lhes o abrigo
E o nocturno calor que se debruça
Sobre as faces brilhantes
de soluços.
E se ninguém vier, ergue o sudário
Que mil saudosas
lágrimas velaram;
Desfralda na tua alma
o inventário
Do templo onde a vida
ora de bruços
A Deus e aos sonhos que gelaram."

Ruy Cinatti, in Poemas de Amor

terça-feira, janeiro 06, 2004

Dois

No meio de todo este estado depressivo que grassa por aí, é justo evidenciar alguns oasis que manifestamente nos ajudam a sobreviver. Refiro-me ao lançamento do Dois. Deve dizer-se, por ser justo e merecido, que a administração de Almerindo Marques colocou de novo a RTP nos carris depois de um profundo e prolongado descarrilamento de gerências anteriores. Começou por limpar a casa, negociando a saída de trabalhadores excedentários, alguns em idade de reforma, reformulou alguns vencimentos escandalosos da era Rangel, colocou na Informação as pessoas capazes de praticar e dirigir um jornalismo sério, inteligente e nada partidário, abriu o conhecido segundo canal à sociedade civil. E se este último ponto parece chavão, recorde-se que estamos a falar de dez horas semanais, o que em televisão é algo extraordinário. Resultados? É cedo, mas por aquilo que se conhece do anúncio da grelha semanal, estão aí todos os ingredientes para o Dois se tornar um canal de referência.