terça-feira, novembro 30, 2004

Indiana Jones das Palavras

Numa demorada incursão pelos jornais americanos surge um nome desconhecido: David Shulman. O nome do senhor aparece na página da necrologia e diz-nos que se tratou de um autêntico Indiana Jones. Ele caçava tesouros mas não aqueles em que estamos a pensar. Durante setenta anos, Shulman frequentou diariamente a Biblioteca Pública de Nova Iorque. Os tesouros estavam lá à sua espera. Palavras.
Ele não nos deixa cabeças de animais expostas nas paredes nem o cálice do Santo Graal num mostruário de museu. Shulman perseguia os neologismos, dava-lhes uma história e entregava-os prontos a serem colocados nos dicionários. Jesse Sheidlower, editora do Oxford English Dicionary afirma que “ele deixou incontáveis contributos”.
Os americanos ficam a dever-lhe que imensas palavras ou expressões passassem de modas simples e corriqueiras a verdadeiras estátuas da língua. Exemplos: “hot-dog” e “Big Apple”. O cachorro quente tem uma história contada em livro de que Shulman é co-autor. “Big Apple” é um termo que a entidade de turismo norte-americana oficializou em 1971. Há até um filme dos anos 60 com Bette Davis, em que ela era uma vagabunda que vendia maçãs verdes e estas já eram o símbolo da grande cidade. Mais antiga ainda é a referência na anedota do imigrante acabado de chegar ao porto de Nova Iorque, com poucas moedas no bolso. Apesar disso, comprou uma maçã, com a vontade de vencer na vida não a comeu, limpou-a bem, vendeu-a pelo dobro, comprou duas, limpou, vendeu, comprou a dobrar, e assim por diante, até que estando com 1 048 576 maçãs, um tio rico morreu e deixou-lhe vários milhões de dólares. Que melhor relação entre a maçã e o êxito financeiro?
Nos velhos discos de jazz e no calão da música, já nos anos 30 havia gente que se referia a Nova Iorque como “A Grande Maçã”. Shulman desenterrou um livro publicado em 1909 em que estava escrito: “O resto do país pensa que a “Big Apple” tem uma parte desproporcionada na importância nacional”.
Esta referência pôde assim entrar nos dicionários mas muitas outras tiveram esse privilégio graças ao trabalho infatigável de Shulman. O jeito que ele daria em Portugal.

segunda-feira, novembro 29, 2004

Da Poesia

Di poesia


Non hai forse già riempito
Tutto l'eserciziario?
Come radice nel suolo di ghiaia
Il vero labirinto ti sta dentro,
E se non ha nome cervello
Si chiama l'intestino:
In povere parole,
Storia o sartoria?
Ma infine anche Alice's sister
Vede il sogno.



© 2002 Franco Buffoni

quarta-feira, novembro 24, 2004

Apenas uma Sílaba

A Sílaba


Toda a manhã procurei uma sílaba.
É pouca coisa, é certo: uma vogal,
uma consoante, quase nada.
Mas faz-me falta. Só eu sei
a falta que me faz,
Por isso a procurava com obstinação.
Só ela me podia defender
do frio de janeiro, da estiagem
do verão. Uma sílaba.
Uma única sílaba.
A salvação.




Eugénio de Andrade

terça-feira, novembro 23, 2004

Um Poema de Fiama

CANTO DOS LUGARES

Tantas vezes os lugares habitam no Homem
e os homens tantas vezes habitam
nos lugares que os habitam, que podia
dizer-se que o cárcere de Sócrates,
estando nele Sócrates, não o era,
como diz Séneca em epístola a Hélvia.

Por isso cada lugar nos mostra
uma vida clara e desmedida,
enquanto o Tempo oscila e nos oculta
que é curto e ambíguo
porque nos dá a morte e a vida.

E os lugares somente acabam
porque é mortal cada homem
que houve em si algum lugar.

Soares e Bush

Qualquer político, em qualquer lugar, gostaria de ter obtido a vitória que Bush obteve. Ela foi expressiva e transparente, foi obtida a partir de fortes convicções e não vergou ao politicamente correcto da política externa e dos costumes. Ele teve o maior número expresso de votos que alguma vez elegeram o Presidente dos Estados Unidos e o seu partido alargou a maioria no Congresso e no Senado.
De nada valeu a opinião veiculada pelos media e claramente favorável a Kerry. Os americanos souberam destrinçar entre a opinião que lêem e a opinião que têm e que vão construindo ao longo do tempo.
Aqui no rectângulo, foram muitos os que declararam ir votar Kerry. Foi pena não o terem feito, talvez assim o resultado fosse mais equilibrado. Ao mesmo tempo, o interesse e a participação demonstrados pelo povo americano confirmaram aos mais desatentos uma sociedade responsável, que sabe o que quer e desmente essa falsa ideia de um povo inculto, desinteressado e egocêntrico.
Na semana que antecedeu o acto eleitoral, no programa “Prós e Contras”, Mário Soares definiu Bush como um fanático religioso que está convencido de que fala com Deus e julga estar a cumprir uma missão na Terra. Perante esta opinião só podemos ter duas atitudes: ou ele acredita no que disse e merece um rápido acompanhamento médico ou então trata-se de uma desonestidade intelectual numa pessoa que se julga uma sumidade internacional, especialmente quando se coloca contra a política externa norte-americana. É preciso lembrar aos “esquecidos estratégicos” que o senhor em causa foi vencido na eleição para presidente do Parlamento Europeu por uma senhora completamente desconhecida, vítima ainda por cima de comentários infelizes e machistas por parte de Mário Soares. Felizmente que no presente outros foram capazes de ascender aos mais altos cargos políticos europeus. Podemos estar contra uma Administração americana, discordar das suas políticas e desejar a sua derrota eleitoral; não podemos é difamar, distorcer factos e mentir sobre as pessoas.
Por favor, ajudem-no a terminar a sua carreira com dignidade.

segunda-feira, novembro 22, 2004

As Scuts

A questão das Scuts é demasiado importante para passar em claro no nosso meio. Evidentemente que, quando se trata de pagar algo que até ao momento é gratuito, se trata de uma medida impopular e problemática. Contudo era bom que todos discutissem o assunto de forma séria e evitassem o folclore das manifestações que acabam em fiasco.
Durante uns tempos lançou-se a ideia que havia almoços grátis. Tudo era facilidade e quem viesse depois que tratasse do assunto. Não há modo mais agradável de fazer política: temos uma situação estável, podemos fazer umas flores, assumir uns quantos compromissos porque quando vier a conta, já cá não estaremos… Foi desta maneira que começou a questão das ditas Scuts: elas foram construídas por privados com a promessa de que o Estado lhes pagaria ao longo dos anos. Quer isto dizer que antes, quando tínhamos uma boa situação económica, não havia dinheiro para essas obras, pelo que o governo da altura, liderado por Guterres, inventou uma engenharia financeira que lhe permitia apresentar ao eleitorado obra feita, passando a factura para orçamentos futuros. Façamos uma pausa para, distanciados que estamos já alguns anos, avaliar este comportamento. Como apelidá-lo? Irresponsável, interesseiro, cínico… O que as mentes superiores esperavam era que o crescimento económico gerasse receitas públicas suficientes para que o encargo das “portagens virtuais” fosse suportado pelos futuros orçamentos.
A verdade é que o mundo não se resume a auto-estradas. E havendo outras áreas onde investir, é perfeitamente natural e justo que os seus utilizadores as paguem, sobretudo em zonas onde existe mais do que uma alternativa de percurso.
Logicamente, muitos portugueses protestarão. Muitos mais do que os que participaram na manifestação em Castelo Branco. Convinha talvez que avaliassem a situação e soubessem a que porta bater para pedir responsabilidades. Foi aliás esclarecedor a ausência do senhor Cravinho quando chamado à comissão de inquérito na Assembleia da República. Consciência perturbada? Não havia necessidade…
A vida é mesmo assim: não há almoços grátis e são certas formas de fazer política que dizem tudo sobre os seus autores.

sexta-feira, novembro 19, 2004

Os anti-sistema

O Euro trouxe o sentimento patriótico e a confiança. Durante uns dias, orgulhámo-nos de ser portugueses, falámos bem de nós, estivemos nos títulos dos jornais de todo o mundo. Mostrámos que somos homens e mulheres fantásticos, capazes de obras meritórias, tantas vezes esquecidas por décadas de coisas pequeninas. Quando não existe inveja, calúnia ou tráfico, qualquer que ele seja, Portugal tem valor e apetece cá viver.
E a outra face da moeda? Quem são os outros? Encontramo-los todos os dias e vivem à sombra do poder da altura, qualquer que ele seja. Ocupam todas as profissões e prometem tudo o que não é seu para dar. Vivem à conta dos impostos que não pagam e anunciam-se como “anti-sistema”. Podem ser gordos ou magros, altos ou baixos. Todos os conhecem por não ter qualidades. Triunfam através de expedientes, pisam quem se lhes atravessa no caminho, são mesquinhos e invejosos. Andam acompanhados por cães ferozes que pretensamente lhes dão um ar de seriedade que um qualquer curso superior não conseguiu. O emprego serve apenas para ir buscar o vencimento no final do mês. Aí não são nada “anti-sistema” e contam as notinhas como os outros. Não fazem nada especialmente bem. Escrevem português com erros, falam convictamente do que ignoram e criam mau ambiente onde quer que estejam. Ninguém gosta deles mas não têm a coragem de os pôr na ordem porque os temem. Odeiam a qualidade, invejam e caluniam o sucesso dos “apagados” que estão na mesa do lado. Millôr Fernandes dizia a propósito deles que não fora o seu passado duvidoso e o futuro incerto e ainda poderiam ir longe na vida. O problema para nós é que, em Portugal, até vão: a preguiça alheia e o tráfico, seja ele qual for, permitem-lhe ser director de alguma coisa ou dinamizar um projecto. Iguais a si próprios e manifestamente incompetentes, tiranizam todas as equipas a que pertencem e humilham os verdadeiros competentes. Eis a coroa de glória: o pretenso “anti-sistema” chega a ser condecorado pelo que nunca fez. Como não tem vergonha e ignora que nada fez, deixa andar e aceita o que não merece. A seu lado, o cão feroz ri na sua irracionalidade.
E aí está a outra face dos portugueses que explica as suas insuficiências: os prémios que se atribuem a esta gente sem qualidades.