terça-feira, janeiro 18, 2005

Língua Portuguesa

Este texto é da autoria de Rui Ângelo Araújo e foi publicado na revista Periférica. A ler com atenção.


O FUTURO DA LÍNGUA PORTUGUESA
O debate sobre a língua portuguesa e o seu futuro está, como dificilmente poderia deixar de estar, impregnado de ideologia. Ou, pelo menos, sob a sua influência. Nesta questão, como em muitas outras, há uma postura conservadora e uma postura liberal. Existem os reaccionários e os revolucionários. Aos que «amam» a língua, uma postura conservadora face à sua evolução parece a coisa mais ajuizada — e é-o, quase sempre. Por outro lado, os revolucionários vêem a atitude condescendente como sendo a indicada. Mas por que raio há-de a tendência ideológica ser chamada para tutelar o evoluir da língua?

A língua, ao fim e ao cabo, não é mais do que um meio de nos entendermos e uma ferramenta para nos ajudar a decifrar o mundo. A Secretaria de Estado do Turismo, o Ministério da Cultura (designadamente o departamento que zela pelo património) e o Ministério da Economia podem ter as suas próprias opiniões sobre a língua portuguesa. Mas, em rigor, o cerne da questão quando se discute a língua é (ou devia ser) o seu carácter de ferramenta intelectual. Ora, a uma ferramenta intelectual destas interessam duas coisas: a «universalidade» e a «riqueza».

Convirá a uma língua ser entendível na máxima profundidade pelo maior número de desgraçados que dela venham a necessitar. Por outro lado, a bem dos utentes, especialmente dos que a tenham como primeiro idioma, convirá à língua possuir uma riqueza e uma proficuidade tais que lhes permitam representar com vasta eficiência o intrincado vórtice dos pensamentos e emoções humanas, a espantosa complexidade do mundo e, cereja que não pode faltar ao bolo, lhe concedam o dom de passar para a boca ou para o papel a fértil imaginação e os exercícios abstractos em que os cidadãos utentes possam, eventualmente, ser pródigos. A «universalidade» do dialecto é condição para que ele cumpra convenientemente o papel primordial da comunicação dentro do universo dos utentes. A «riqueza» é atributo imprescindível para garantir ao universo de utentes o máximo de capacidades para as grandes olimpíadas da civilização. Disto resulta que a evolução da língua deve observar, com a flexibilidade que à frente se verá, estes dois pressupostos.

Uma das discussões acerca da evolução da língua portuguesa passa exactamente por aqui. Deverá ou não a língua evoluir por aquilo a que chamam a crioulização, a mestiçagem? Pois bem: as práticas correntes não obedecem a normas. Cada país, cada região, cada classe social, cada tribo urbana adopta os vocábulos e constrói as frases como muito bem lhe apetece. E isso resulta. Até certo ponto. Quando a comunicação precisa de se fazer num círculo mais alargado, o indígena escolhe melhor os termos — ou aceita que não o entendam. Daí ser, ao que me parece, a atitude conservadora a que deve vigorar quando se pondera a integração de novas morfologias ou novos termos no idioma. A universalidade dentro do país deve estar assegurada, sob risco de terem os governos de formar equipas de alfabetização que integrem toda a comunidade nas novidades que esta não absorveu pelo processo normal de evolução das línguas: a propagação e a adopção generalizada.

Significa isto que está vedado aos escritores a experimentação? A adopção de regionalismos, de estrangeirismos, a criação de neologismos? Seria ridículo pretender tal. A literatura vive num universo paralelo onde a anarquia é possível. Quando o autor faz as suas redacções num «esperanto» próprio, o risco é todo seu (e do eventual editor). Isso não afecta a vida dos cidadãos — como afectará um documento das finanças escrito em mirandês ou uma lei redigida em crioulo (sendo certo que alguns documentos e algumas leis que vigoram estão redigidas em dialectos indecifráveis, com os subsequentes problemas de interpretação que se conhecem — quod erat demonstrandum). O escritor que arrisca confia na capacidade de dedução dos seus leitores. Mas, na utilização não literária, o desejo de uma comunicação clara (mesmo que, por necessidade, complexa) deve vir antes da ambição de efeitos estilísticos, das experimentações. Ou seja: a literatura pode ser terreno fértil para testar a evolução da língua, mas as evoluções não devem ser adoptadas oficialmente enquanto não for garantida a universalidade da inovação, ou algo próximo disso.

Por outro lado, a evolução não deve acobertar a adopção do erro, como está implícito no pensamento de alguns mais tocados pela ideologia da libertação, simpatizantes da luta dos pobres (de espírito) contra os opressores (os compêndios). A simplificação, a libertação de espartilhos gramaticais só aparentemente tornam mais eficaz a comunicação. Se «simplicidade» significasse sempre melhor comunicação, nunca teríamos abandonado o urro como idioma corrente (bem, é certo que nem todos abandonámos). A integração de certos erros gramaticais no panteão das letras, mesmo quando se trata de erros comuns, cometidos pela maioria, aumenta a confusão e o ruído. Permite a ideia de que, afinal, não há normas. Potencia uma variedade tal de fórmulas que, em vez de enriquecer o idioma, corre o risco de o tornar babélico. Se, na maior parte dos casos, isso até pode não causar mossa (a não ser à sensibilidade estética), lembre-se, no entanto, a diferença que uma vírgula ou a sua ausência pode causar em certos documentos e ter-se-á uma ideia da quantidade de casos em que o erro pode afectar, efectivamente, a polis. Depois: a disciplina e o rigor na utilização do idioma não são totalitarismos — são a certeza de que nos obrigamos a ter método, a pôr de lado a preguiça, a vencer a tendência natural para o desleixo, coisas que nos conduzem a um laxismo intelectual pouco propício ao desenvolvimento da massa encefálica.

Quanto a certos neologismos e estrangeirismos, por mim não teria pressa em integrá-los formalmente na língua. Há maneiras de os utilizar assinalando a sua origem estranha (o itálico, as aspas). Em certas prosas muito modernas integra-se o inglês, o crioulo ou os neologismos no corpo de texto como quem não quer a coisa. Grafam-se em letra de tipo igual ao que se usa nas palavras naturais da língua. Resultam daí, não raro, obstáculos desnecessários para a compreensão do texto. Em redacções literárias experimentais, a integração de vocábulos estranhos pode ter um objectivo fonético, poético, rítmico, e o risco é salutar. Na prosa comum, mesmo que literária, este comportamento corresponde a maneirismos inúteis e novo-ricos. Bem sei que o advento da informática, ao permitir que imprimamos os textos sem um tipógrafo ou editor de permeio, veio dar a cada um o seu modo de trabalho. O que significou, quase sempre, abrir portas à preguiça. Recursos como o itálico, as aspas e o negrito, aparentemente mais fáceis de usar do que na escrita manual, passaram, para o cidadão comum, a ter uma função meramente eventual e estética. O que torna certos textos pouco legíveis. Claro que o escritor moderno (seja ele um estudante, um burocrata ou um romancista de nova geração) gosta de confiar na nossa competência dedutiva, de pôr à prova a nossa capacidade de entendimento com a sua prosa avant-garde — transformando-se as mais das vezes num escritor «mal entendido». Com propriedade.

Mas, quando digo que a evolução da língua deve ter em conta a «universalidade», de que «universalidade» falo? Da que se confina ao rectângulo nacional ou a da lusofonia? Ora ainda bem que me faço esta pergunta (posso assim soltar o reaccionário que me habita). O melhor, pelo menos para o brio dos portugueses, seria que a evolução da língua nos diversos países lusófonos se desse de um modo convergente — quero dizer: que Timor, os PALOPs e o Brasil convergissem connosco. Mas isso constituía um problema para a moral «de esquerda»: então não há que preservar a identidade de cada povo?

A nossa ética obriga-nos a respeitar as especificidades de cada tribo — e isso também é válido para a língua. Chatice. Mas agora viremos o bico ao prego: não tem Portugal o direito a manter um português próprio, de acordo com a evolução da sua identidade? A aproximação dos diferentes linguajares terá forçosamente de ser feita à custa da crioulização do português de Portugal?

Que a língua nos diversos países lusofalantes evolua de modos diferentes não é, em minha opinião, a catástrofe que a muitos aflige — desde que seja fornecida aos cidadãos uma segunda língua, uma língua que garanta a universalidade a um nível mais lato (como acontece com os países do norte da Europa, que ambicionam menos expandir a língua do que aprofundar o domínio do inglês).

Os portugueses precisam de aprender português porque vivem em Portugal, e aqui a vida desenrola-se em português. Não seria proveitoso para o autóctone nascer e viver em Portugal tendo como único idioma o checo. Teria, digamos, alguns problemas de integração e certas dificuldades na compreensão do mundo, mesmo do pequeno mundo que o rodeia. Mas, para lá do «universo» que é o território pátrio, é mais proveitoso para o indígena aprofundar o domínio duma língua franca (o inglês, claro está) do que ficar à espera da convergência dos outros povos.

O que é que acontece em Portugal? Falha a aprendizagem duma língua internacional e falha a aprendizagem da língua materna. E é aqui que bate o ponto. A discussão sobre a aprendizagem do português torna quase ocioso o debate sobre o futuro da língua, torna-a matéria para a Academia de Ciências e para os futuros etnólogos, para os promotores da mestiçagem e para os curadores dos museus da língua. Antes da evolução e da expansão do idioma (tão cara aos saudosos do império que somos todos em algum momento) é preciso assegurar que as gerações lusoparlantes, nadas e criadas num jardim onde a moeda de troca intelectual é o português, fiquem dotadas com as ferramentas mínimas para se entenderem. Para entenderem os jornais e os livros que deviam ler (não é de esperar que, ignorante do português, a rapaziada desate a ler originais estrangeiros). Para entenderem os impressos dos impostos que não pagam. Para entenderem os relatórios sobre o fracasso da economia. Para, enfim, entenderem a certidão de óbito da pátria.

Em muitas das discussões sobre a língua portuguesa, os contendores não se apercebem, mas debatem mais os problemas decorrentes de um mau ensino do que propriamente assuntos atinentes à língua itself. Porque esta é a verdadeira discussão. Se o Brasil se afastar mais um oceano de nós, podemos perder influência geopolítica (influência que, a vir, viria por «arrasto»), perder um mercado (que não temos), precisar de legendar as novelas. Se em Timor evoluir um português que exija intérprete, teremos de nos conformar: sempre assim foi. Se a percentagem de falantes de português nos PALOPs diminuir, lá se vai a commonwealth à portuguesa (que, caso não tenham reparado, nunca existiu). Mas, se cá na pátria o cultivo da língua continuar viçoso como nas últimas décadas, então o futuro já não será uma questão de mestiçagem ou de manutenção do português de lei. O futuro será uma questão de ter uma nação inteira de voltar ao «a-e-i-o-u» — soletrado ao som da régua em compasso binário. RAA

2 comentários:

Anónimo disse...

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Anónimo disse...

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