terça-feira, abril 05, 2005

Um Herói

A história tem já alguns dias, a mensagem é bem actual. A verdade é que nem conhecemos o seu nome mas talvez isso não seja o mais importante. No Sudão, o piloto de um avião de carga condenado a cair tomou aquela que foi a sua última decisão: afastou-o da zona residencial que podia transformar-se em alvo e levou-o para o deserto onde, finalmente, se despenhou. No desastre, morreram sete pessoas, incluindo ele próprio.
Sucedeu há quase um mês no Sudão, a vinte cinco quilómetros do centro de Cartum, a capital sudanesa, e a verdade é que o morticínio só não aconteceu devido ao gesto do piloto. Quem nos contou esta história? Ah, isso sabemos. Abou Bakr Jaafar e Seif Mazrouq Saad Umar são directores da aviação civil do Sudão e da Air West, a companhia aérea a que pertencia o avião cargueiro. Ou seja, as agências noticiosas referiram os seus nomes como fontes mas não foram capazes de indicar o nome do piloto transformado em herói. Ironia do destino? Talvez, ou então tal impossibilidade teve a ver com a rapidez da sua morte mas não tinha sido também rápida a decisão de poupar vidas, mesmo sabendo que não salvava a sua?
Num mundo de desnorte e de individualismo, que lição tirar desta atitude anónima? Muito simplesmente, podemos fazer sempre algo para salvar vidas, reduzir acidentes, minimizar danos. Tratar-se-á de um caso único? Longe disso, houve outros heróis em todos os continentes e em várias circunstâncias, mas o facto desta história se ter passado num país noticiado pelos piores motivos – nomeadamente, constantes violações dos direitos humanos -, torna tudo ainda mais insólito.
No país existem 1,8 milhões de deslocados, vítimas do conflito armado que ali decorre há décadas. Dezenas de milhares de mortos que, mesmo assim, estão longe do milhão de pessoas ameaçadas pela fome. Todos estes números não tocaram fundo na comunidade internacional. Esta continua impassivelmente envergonhada e à última hora evitou mesmo a “simples” inscrição de genocídio no último relatório assinado pelos inspectores das Nações Unidas. Nestes momentos há sempre alguém que fica feliz e aliviado: os governos locais. Desta vez, foi o governo sudanês. “Temos uma cópia desse relatório e não se fala na existência de genocídio”, declarou o ministro sudanês dos Negócios Estrangeiros aos jornalistas no final de Janeiro. Pode existir violência, fome, um elevado número de violações, imensas pilhagens, um grande número de deslocados, mas o importante é não levantar muitas ondas e, para descanso de todos, o maior país do continente africano tem apenas – segundo os relatórios oficiais – um “potencial de genocídio”.
Voltemos ao nosso herói, muitas linhas depois da última referência. Que resposta deu o nosso anónimo ao mundo individualista e de desnorte? Com que acção respondeu aos relatórios oficiais e às consciências pesadas? Que pedra atirou às vontades guerreiras das forças guerreiras do pó sudanês? Um simples homem que não deixou o nome para a posteridade, condenado à morte pelo destino, desviava o seu avião para salvar um elevado número de compatriotas que jamais conhecerá. Em terra, estes mesmos compatriotas ignorarão o gesto e lembrarão apenas “o destino”, essa figura imensa. Jamais lembrarão a humanidade do acto e a lição de vida que aconteceu no seu país. Um país repleto de vítimas e algozes.

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