quarta-feira, novembro 26, 2003

Gonçalo passa a vida a organizar férias que nunca fará. Adquire todas as ferramentas necessárias: mapas, guias, revistas e vídeos. Contacta pousadas e hotéis. Nada é deixado ao acaso. Na maior parede do quadro, está exposto um enorme mapa-mundo. Em cima de uma estante, uma pequena caixa de alfinetes coloridos que hão-de assinalar tantos destinos por cruzar.
Certa vez, encontrei-o feliz a distribuir alfinetes pelas mil ilhas das Filipinas. Ignorando ainda as suas manias, perguntei-lhe quando tencionava partir. Gonçalo, muito ofendido, respondeu-me que não pretendia sair de casa e que não trocava a segurança dos seus sonhos pelo desconforto da realidade num país do outro mundo. Mais tarde, lembrar-me-ia que o real é imperfeito e é isso que o distingue dos sonhos. Tudo o que dói é real. É poi a dor que assinala a fronteira entre o sonho e a realidade.
Lembro-me também em todos aqueles que pensam decorar o apartamento. Digerem-se revistas de decoração, questionam-se arquitectos e designers, imaginam-se paredes, tons e luzes. Quando as obras terminam, descobrem-se as imperfeições, os dedos sujos nas paredes, as traições, o real. E lá foi a casa dos sonhos...
Os sonhos não pagam impostos. Um apartamento bem sonhado nunca tem problemas de infiltrações, nem vizinhos barulhentos, nem sequer tem andares por cima. Imagino-o com um terraço amplo por cima e uma piscina não muito grande. Vou passar a ler as páginas do imobiliário, tentando descobri-lo.
Quando ontem liguei a Gonçalo avisou-me logo que não podia falar comigo pois estava quase a pousar no Rio de Janeiro. Incrédulo, pedi-lhe que repetisse. Insistiu que estava aos comandos de um jumbo, já baixara o trem de aterragem e aguardava as instruções da torre de controlo. Desliguei desejando não ter perturbado a operação.
Mais tarde haveria de ligar-me explicando que tinha comprado um simulador de voo e que nos últimos dias pouco mais tinha feito senão voar sobre Paris, Londres, Nova Iorque. Inexperiente, despenhou-se sete vezes e matou mais de mil passageiros.
Gonçalo, porém, nunca sofreu nem um arranhão. “É o triunfo do sonho”, assegurou-me.

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