quarta-feira, novembro 19, 2003

A partir do momento em que a comunicação social descobriu a justiça como fonte de espectáculo e como um meio para subir nas sondagens o mundo está diferente. Nos anos iniciais da televisão privada, é verdade que tínhamos o crime e o sexo mas, no fim de contas, o discurso é idêntico: antes davam-nos os agressores, agora dão-nos os justiceiros. Desiludam-se os que pensam que podemos colocar de um lado os bons e do outro os maus.
Diz-se que a televisão “deforma” a pessoa, alguém que conhecemos magro torna-se, no pequeno ecran, mais gordo. Ora, é mais ou menos isso que acontece quando um político está a falar para a TV. Considerando que o seu objectivo comunicacional é tentar convencer o espectador, o seu discurso visa esse e só esse objectivo. Se a sondagem de popularidade do mês seguinte for positiva, então o objectivo foi alcançado. Lamentavelmente, conceitos como verdade, mentira, rigor são pouco importantes e passam um pouco ao lado. Decisivas são a estética e a fluência da narrativa. E aqui ficamos nós, pobres espectadores, desarmados, incrédulos e desconfiados. Mas eis que chegam os comentadores.
Tendo em conta a nossa surpresa, o comentador funciona como tradutor, alguém que, falando a nossa língua, nos ajuda a descodificar a mensagem. Se o comentador também for político, então podemos entender as manhas que se escondem no meio dos discursos.
Existem situações em que a mentira é detectada mas como passou a ser vista como um hábito ou um ardil e já não um defeito de carácter, isso não tem consequências. Voltando ao espectáculo e considerando que este é o acto do imediato, é o brilho que não dura para além do momento, a memória está fora deste “jogo”, nem sempre se torna nítido que alguém esteja a mentir.
Talvez seja por tudo isto que a política anda afastada das pessoas, apesar de precisar delas e de se servir delas diariamente. Das pessoas comuns que “habitamos” num outro mundo, não virtual mas bem real. Um mundo que é o oposto do espaço dos meios de comunicação social.
P.S. Tudo isto explica a intranquilidade. Se o nosso sistema judicial existe para ser o espaço de isenção e da verdade, que dizer da enorme quantidade de procedimentos entre o real acontecido e a sentença definitiva? O lugar criado para o conhecimento da verdade não é mais do que um lugar onde tudo se vai enredando e adiando de recurso em recurso.

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